terça-feira, setembro 20, 2011

Nós, os homens

não perdemos tempo com essas coisas - disse ele. Estava tão triste que até a roupa que trazia sobre o seu corpo curvado parecia chorar.
- Porquê? - perguntou ela.
- Porque as coisas são como são. Começam, duram o que têm de durar e acabam.
- Mas podemos falar sobre isso, ou não?
- Para quê? Acabou, está acabado. Adeus, e felicidades. Segues a tua vida, eu vou à minha.
Ela estava vermelha de aflição e, provavelmente, de raiva. Uma raiva contida pelo ténue fio da esperança que ele quebrou num ápice:
- Já o meu pai dizia que as coisas, quando quebram, não adianta consertá-las.
- Ai é? Então porque te tornaste técnico de computadores, quando o teu pai, raios o partam, te pediu mil vezes que entrasses para a Carris, onde ele e o pai dele trabalharam toda a vida a picar bilhetes?
Ele encolheu os ombros, agarrado ao medo de ceder à fome que já sentia dela, e ainda a tinha à frente.
- As coisas acabam. Vai à tua vida que eu vou à minha.
- Pois acabam, seu estúpido parvalhão - ela não tinha medo algum de ceder à fúria e à dor - por isso é que comemos todos os dias, e dormimos todos os dias, e temos de refazer tudo, todos os dias.
Ele olhou-a com olhos de fome, e virou-lhe as costas num andar de vagabundo.
Uma separação tão idiota, e não era capaz de voltar atrás.
- Porquê? - perguntei-lhe eu, um dia à conversa, espantada com os cabelos brancos que lhe nasceram de repente.
- Nós homens somos mesmo assim.
Não são nada, e todos sabemos disso. Mas ele não quer ouvir. Também agora já não adianta nada. Um ucraniano que ia a passar, reparou nela e nunca mais a largou até lhe colocar uma aliança de casada no dedo. Consta que são muito felizes.

domingo, setembro 18, 2011

O fogo, o fígado de Prometeu e a águia do pai dos deuses


Ele queria tanto ajudá-los. Depois, tinha medo e deixava-os sozinhos, a tremer nas noites intermináveis. Perguntou aos outros se não queriam juntar-se a ele, na partilha do conhecimento proibido. Uns fugiram. Outros riram-se. Outros ainda, apontaram para o alto da montanha onde a águia planava: «Queres alimentá-la do teu fígado, todos os dias, até ao fim dos tempos?». Por fim, ele desceu ao povoado e mostrou aos aflitos seres humanos, que dormiam e viviam entre rochedos ou nas copas das árvores para fugir às feras, que havia luz para além das trevas. Nenhum dos deuses ou dos semi-deuses o acompanhou, mas todos o acusaram:

- Prometeu partilhou com os homens a interdita dádiva do fogo.

Divinamente irado, o deus supremo pregou-o nas montanhas do Cáucaso e entregou-o à sua águia. Desde então, ela continua, todas as noites, a devorar-lhe o fígado que cresce todos os dias. Uns dizem que Hércules, compadecido, o soltou durante o tempo dos heróis. Será verdade? A escuridão ainda é tanta. E o medo de a rasgar maior ainda. Muitos, que sabem tão pouco pouco, negoceiam o conhecimento gota a gota, e sentem-se poderosos. Poucos, que sabem muito, partilham o saber. De graça e por amor. Esses, quase todos, morrem pregados na cruz, queimados em fogueiras, varados de balas, torturados, ou em acidentes que nunca ninguém consegue explicar.

O fogo, porém, cresce. A luz que o acompanha é uma imparável maré.


segunda-feira, setembro 12, 2011

Era uma vez o Porto

Tia Lena, Jó, Faruk e eu

E nunca mais encontrei por tantos caminhos cruzados um mar como aquele, tão bravo e tão doce, que ao recuar, na maré baixa, deixava atrás de si miríades de lagos dentro de rochas cobertas de lapas,  mexilhão e limos, onde nadavam peixes, estrelas do mar, anémonas, caranguejos e camarões e onde, a certas horas, se olhássemos com muita atenção, cnseguíamos ver sereias translúcidas de cabelos dourados. Ali, e por então, era o mais perto de casa que conseguia chegar.