quinta-feira, dezembro 30, 2010

Escritores, poetas

alimentam-se de palavras vivas, dessas que o vento não leva, o fogo não queima, o tempo não esquece, porque nelas habitam todos os ventos, todos os fogos e todos os tempos que existem, existiram e se hão inventar.
Palavras destas matam todas as fomes.
Palavras destas não há palavras que as descrevam.
O que delas nos fica é uma palidíssima imagem que, na vertigem do voo e da queda, conseguimos mesmo assim reter.

Changara, Moatize, Caroeira, Meponda, Metangula, Nacala, Furancungo...

Para nós, para mim, começaram por ser nomes, escondidos nas páginas de ontem, que se fizeram presentes.  Nomes muito antigos com o travo da descoberta, o perfume de muitos reencontros. Nomes de lugares. Palavras musicais em todas suas bem amadas sílabas. Changara, Moatize, Caroeira,  Meponda, Metangula, Nacala, Furancungo, Lourenço Marques, Beira, Nampula, Namaacha, Luanda, Moçâmedes, Cabinda. E tantos, tantos mais.
Juntamente com estes nomes, rostos de quem amamos, em todas as declinações do afecto. E sabores, cheiros, histórias. Paisagens inesquecíveis. Terra escura, terra-mãe, terra nossa, porque é nosso tudo o que amamos sem condições.
Vida. Uma explosão de vida.
Pode-se usar, por uma vez, o tão estafado, o tão abusado vocábulo «Saudade»?
O bom dos bons velhos tempos, é que são sempre novos.
O bom dos bons velhos tempos é que nos estão sempre a acontecer.
Que o coração se dilate para abrigar tanta memória feita presente. E uma amorosa gratidão que nem sei quanta.

domingo, dezembro 19, 2010

Feliz natal toda a gente!

No tempo circular do calendário cristão há uma altura em que se espera por um menino. Um bebé.  Chega nas noites mais escuras e longas do longo Inverno. Rompe o manto das neves, atravessa chuvas, ventos, tempestades, e, a certa altura, até descia pelas chaminés das casas para colocar presentes nos sapatos das crianças. Era, é, um mensageiro do paraíso. O santo e a senha para iludirmos abismos infernais e caminhar com segurança durante a viagem da vida. Para nós, para mim, o lado maravilhoso de toda a duríssima e assustadora e inatingível perfeição que o catolicismo  propunha.
Sem ameaças nem censuras, frágil e sublime, aquele bebé adorado e adorável chega de braços abertos para o mundo inteiro, com o seu destinado de carregar o género humano em peso para o céu do Pai do céu.
Lembro-me muito bem dele. Amá-lo-ei até ao fim da memória.
Também me lembro que não lhe podiamos exigir mais, mas pediamos-lhe muita coisa.
Na nossa lista dos presentes de Natal.
Feliz Natal, gente da minha terra que é a Terra toda.

quinta-feira, dezembro 16, 2010

Guerreiro, de que tens tanto medo?

Era alto, mais alto do que a maior parte dos homens, e estava, sempre, coberto de uma armadura que o protegia dos pés à cabeça. Aliás, tinha várias, consoante andava a pé ou a cavalo. Todas primorosamente executadas e belas, conjugando metais raros e couros de animais desconhecidos. Do rosto, apenas as pupilas se deixavam entrever. Desta forma, dele se podia dizer quase tudo. Que era loiro, moreno, novo ou adiantado em anos. Que nunca sorria, ou que o fazia com frequência. Que desconhecia o amor ou que, tendo-o conhecido, o perdera para sempre.

Ele era uma fonte viva de lendas múltiplas.

As mulheres suspiravam à sua passagem.

Os homens temiam-no e, secretamente, detestavam-no.

Mas ele parecia indiferente ao efeito que produzia à sua passagem e os seus soldados, armados, também eles, até aos dentes, tinham de ser ríspidos com as crianças que, a todo o custo, se queriam abeirar dele. Uma vez, uma menina tocou-lhe. Durante dias foi passeada pela aldeia em triunfo, obrigada a repetir até às lágrimas, até à náusea, até à exaustão, tudo o que se passara no brevíssimo espaço de tempo em que, furando por entre as pernas musculadas de uma dúzia de homens de armas, chegara até ao metal que protegia os pés do guerreiro. Então curvara-se e beijara o pó que embaciava a fivela da armadura, no ponto do tornozelo. A sua boca pequenina deixara ali uma marca em forma de coração.

Ela jurava que tinha sentido o guerreiro estremecer.

Depois, mãos brutais agarraram-na e ela foi jogada ao chão, para longe, caindo na estrada sem se magoar. Estava em êxtase e a queda pareceu-lhe um voo.

Apenas uma criança se mantinha à parte quando o guerreiro passava com a sua comitiva eriçada de lanças e espadas, protegida por grevas, escudos e elmos,  rumo ao castelo de fortes ameias no alto do monte fronteiro à aldeia.

Um dia, o guerreiro parou e fez um sinal a um dos seus guardas, que se aproximou do miúdo, e, pegando-lhe ao colo o levou até junto de si. Então, todas as crianças sustiveram a respiração, todas as mulheres levaram as mãos ao rosto, sustendo gritos e todos os homens se curvaram sentindo um gelo nas entranhas e um nó na garganta.

- Podes fazer uma pergunta ao Guerreiro. Uma só - disse o soldado, numa voz que parecia chegar do outro lado do mundo.

A criança estava calma. Era um menino de seis anos, o tonto da aldeia. A sua mãe, jovem e viúva, era profundamente só. As mulheres temiam a sua beleza, os homens temiam a intensidade do desejo que sentiam por ela. Além disso, tinha um filho que dizia coisas estranhas a propósito de nada, e olhava as pessoas como se as visse à transparência.

O soldado pôs o menino no chão. No silêncio total que se seguiu e que durou uma eternidade, todos retiveram a respiração até se ouvir a sua voz cristalina perguntar:

- Guerreiro, de que tens tu tanto medo?

 
 
 
«Shinto» cortesia de  Wikia

quarta-feira, dezembro 15, 2010

O perfeito silêncio

é a dádiva que recebe aquele que encontrou a perfeita palavra.
É em sua busca que peregrina o poeta que é um místico, um santo, um louco de Deus.
Se conhecerem algum, tratem-no com toda a veneração. A sua vida calcinada e dura, o seu corpo trespassado de feridas visíveis ou encobertas, os seus olhos a arder de febre e de luz, são a sua certidão de identidade.
São tão raros, que é benção encontrar algum. Pode até apresentar-se como mendigo, mas ao bebermos do seu ar reconheceremos, de imediato, estar diante de um rei ou rainha de inatingíveis e sublimes reinos.
Andam entre nós de empréstimo.
A exaltação é a sua medida.
Muito poucos se deixam ver. Muito poucos conseguem vê-los.

sábado, dezembro 11, 2010

a função da memória

é esquecer. Tento lembrar-me disso todas as vezes, ao longo dos nossos diálogos repetidos como um velho disco cuja agulha salta repetindo a mesma fraseologia musical até lhe roubar todo o sentido.
Eu falo ela pergunta, eu falo, ela pergunta. E diz: não sei se já reparaste mas estou tão esquecida. Tão esquecida. Diz que se aborrece infinitamente. E regista o absurdo, na sua dela opiniáo, de estar a viver há tantos anos. Noventa e quase três. Mas o seu cérebro funciona de uma forma táo errática, que até isso esquece. A névoa do tempo embrulha todos os seus pensamentos. É o calor do sangue que lhe mantém vivos os afectos. E esses estão para lá do fim da memória.
Pede-me que lhe escreva as coisas, com os nomes, os factos, as datas. E que lhes some imagens. Para desfolhar nos dias iguais, tantas vezes que se lhes colem com a força do hábito de as repetir. O riso, que ainda solta expontâneo, contagia. E ajuda a esconder as lágrimas. As minhas.

quinta-feira, dezembro 09, 2010

«Armas de destruição» natural. Onde pára o exército?

No caos que se seguiu aos tornados que assolaram algumas regiões de Portugal, toda a ajuda seria bem-vinda. Por exemplo, por parte daquela multidão de homens na flor da idade, completamente inúteis no que toca ao bem comum, porque a filosofia que preside à sua existência enquanto corpo social, é apenas a intervenção em «teatro de guerra». Entretanto jogam com seus artefactos milionários em circuito fechado. 

Que fragilidade a dos sucessivos ministros de defesa de Portugal, sempre tão impossibilitados de afrontar a «dignidade» dos quartéis ordenando às chefias do exército português, tão estreladas e tão conscientes da sua importância no teatro autista em que se movem, que ponham os mancebos a reconstruir, a remover destroços das estradas, a ajudar as populações. É também lhes podiam servir para isso as magnificas valências que adquirem na Academia Militar, uma das melhores no ranking mundial. E a maquinaria pesada, toda, necessária para a sua execução. E a logística exemplar para optimizar uma acção destas em tempo recorde.
Podia, inclusivamente, servir-lhes de treino.
Assim, quando tiverem de executar o trabalho para o qual foram treinados – matar e destruir –, sempre terão no seu curriculum outras acções igualmente compensatórias e louváveis.
Entretanto já ascende a doze milhões o prejuízo. As lágrimas não tem conto. Nem entram em linha de conta. É o desespero de muitos portugueses que tudo perderam numa brutal rabanada de vento. Em minutos.
http://www.cmjornal.xl.pt/detalhe/noticias/ultima-hora/tornado-prejuizos-de-12-milhoes

terça-feira, dezembro 07, 2010

o Terceiro Lugar


Memórias de infância e pagelas religiosas que reencontrei num armazém no Porto, na Rua da Flores, levaram-me de volta a um livro que li há anos sobre o «nascimento» do Purgatório.
Subsidiário do Tempo Linear, lugar de esperança, reino intermédio, onde todo o sofrimento é redentor, o Purgatório constitui-se destino temporário de almas em trânsito, às quais é possível alcançar a Salvação – o Paraíso – através de uma purificação necessariamente dolorosa pelas «poenae purgatoriae». A conceptualização acabada desse «terceiro lugar» dá-se no meio erudito da Baixa Idade Média – Le Goff situa-a na Escola de Notre-Dame de Paris, entre 1170-1180 – no culminar de um longo processo exegético, cuja etapa última consistiu num sem-fim de debates, querelas e reflexões filosóficas, alicerçadas em conteúdos do Antigo e do Novo Testamento, sem desprezar o recurso às visões e êxtases de santos.
Finalmente enquadrado pelo dogma e cartografado pelos místicos, esse espaço-tempo ígneo, de características e funções muito específicas, ganharia plena autonomia entre os dois extremos que, no imaginário ocidental, balizavam o destino dos mortos: Céu e Inferno. Tratou-se de uma autêntica revolução nas mentalidades, esta transposição do sistema trinitário de fundo indo-europeu para o dualismo religioso judaico-cristão, ou mesmo greco-romano, tão presente nas geografias mais fatalistas do além. Finalmente, com Dante, o Purgatório encontrará a sua magnífica conceptualização final.
O livro, que reli prazeirosamente, ajuda a prespectivar em profundidade esta questão.
Recomendo-o vivamente.
Jacques Le Goff, O Nascimento Do Purgatório, 2ª ed., Lisboa, Editorial Estampa, col. Nova História, 2ª ed.1995

domingo, dezembro 05, 2010

Envelhecer


Aquele jovem no meio de dois senhores idosos, era o pai. Dias de Verão no Douro, na pequena quinta dos meus avós.


O avô, a bondade em pessoa. Os jovens são o  pai e o tio Rogério. 


Um dia, o tio Rogério disse, a propósito de um livro* que deixei com ele para podermos comentá-lo juntos:
- Não tenho dúvidas acerca da seriedade desta obra. É científica e parece-me, para além de muito credível, muito bem construída. Mas, no meu edifício mental, já não tenho espaço para ela. Não me interessa nada, portanto, aprofundar os meus conhecimentos nessa direcção. Compreendes, construí-me tijolo a tijolo. Sem frinchas. Sem desvios. Com muito trabalho.
- Mas não tem interesse por coisas diferentes? - perguntei.
- Na minha idade, seguir por caminhos tão novos, obrigar-me-ia a abrir frinchas meu edifício. Isso é perigoso. São traves mestras, aquilo de que estamos a falar, entendes?
Percebi que o que me estava a dizer era: «estou velho». Teria, na altura, oitentas e muitos, mas eu nunca pensara nele nesses termos. A lucidez, a clareza com que mo disse, e que não consigo reproduzir por inteiro, não desmentiam essa noção de que o tempo cravara nele as suas garras. E doeu-me muito para além do que ele poderia imaginar. O tio Rogério morreria poucos anos depois.

Lembro-me regularmente desta conversa. Quando o meu entusiasmo esmorece. Quando tenho preguiça para ouvir os outros, quando esses «outros» têm tesouros para partilhar com o mundo. Felizmente, os meus filhos, os meus amores, os meus amigos, o mundo que me rodeia, ajudam-me a estar atenta, a permanecer acordada. Com escolhas, selectivas que implicam, muito naturalmente, exclusões.
Saberei, porém, que envelheci irremediavelmente, no dia em que deixar de me interessar, genuinamente, por aquilo que pensam, fazem, ou amam, os que me são próximos.
E agora, a olhar para fotografias velhas, descubro o jovem que o meu pai foi. Conheci-o sempre tão adulto, tão encerrado num mundo onde, de uma forma misteriosa, não fazíamos parte. Uma muralha sonora separou-o de nós, ao longo de toda a infância. Fechado no escritório, a ouvir música clássica, durante os Domingos inteiros que o tínhamos perto de nós, o pai era um adulto muito velho. Agora, imagens e histórias, devolvem-me parte do puzzle humano que ele foi. Aquele puto bonito, com roupa tão gira, podia ser um dos nossos amigos.

*O livro em questão era o Dicionário dos Símbolos, da Robert Lafont, uma obra de referência que me acompanha há quase 30 anos.

quinta-feira, dezembro 02, 2010

Responsabilidade, disse ele





Recordo os seus olhos escuros, e a pergunta fatal: «quando vê um jovem com um dos seus livros na mão, sente a responsabilidade?» Não falou em «satisfação» ou «orgulho», que é o que normalmente se pergunta a um escritor nessas circunstâncias. Este aluno, de uns dez, onze anos, um dos muitos que me crivaram de perguntas deliciosas, foi muito mais longe. Foi direito ao cerne da questão. Respondi com a verdade: sim! A responsabilidade de colocar um livro no mercado é sempre muito grande. Mas é ainda maior quando o público alvo é tão jovem.
Não sei se lhe cheguei a agradecer a questão, que é fulcral. Em todo o caso, agradeci e agradeço a todos os que ali estiveram. Amigos que vieram de vários lados. E às turmas que professores interessados e sensíveis prepararam para este encontro maravilhoso. E agradeci também ao estabelecimento de ensino quase mítico onde André, um outro André, deixou escritas na memória dos tempos, algumas páginas de história da vida privada dos alunos dos anos 80.