quinta-feira, novembro 18, 2010

André e Timóteo no grande auditório do Passos Manuel

 Foi um belo teste e o Timóteo passou com excelente. Só se levantou quase no fim da sessão de perguntas, quando se sentiu na berlinda. Ou seja, quando depois de muito perguntarem sobre as novas aventuras do André, desta vez no Labirinto, os alunos quiseram saber coisas dele. Tranquilo, subiu as escadas do auditório, e deixou-se afagar por duzias de miúdos e miúdas, posto o que voltou para a primeira fila. Aí deitou-se e assistiu ao espectáculo de magia.
Seria muito útil, para a educação cívica dos nossos futuros adultos, que pequenas palestras sobre animais, com a presença destes, decorressem nas escolas. Alertando-os, quando ainda têm o coração alerta, sobre a responsabilidade que temos sobre tudo o que nos rodeia. Animais de companhia muito particularmente. A história do Timóteo tocou-os. A sua docilidade pachorrenta, encantou-os. Calhou mesmo bem. «O Mundo de André», com as suas aventuras de terror e maravilha, passa muitíssimo por estas vertentes e por estes desafios.

quarta-feira, novembro 17, 2010

Com deus e os anjos

O deus pai da minha infância era tenebroso. Usava barbas e o seu olhar seguia-nos para todo o lado. Um erro, um pecadozinho de nada, levava a nossa alma para as vizinhanças do inferno. Chamava-se purgatório e doía muito permanecer ali. Tinha fogo, onde nos queimávamos horrorosamente. Um pecado um pouco maior, chamava-se pecado mortal, condenava-nos a indizíveis tormentos pelo tempo de uma eternidade que é um tempo que nunca, nunca, mas mesmo nunca, termina.
Eu ouvia estas ameaças sairem da boca de pessoas que me habituara a considerar bondosas e doces. Por exemplo, na missa, na altura do sermão, os padres, muitos deles, transfiguravam-se em ogres. Da sua boca jorravam insultos e pragas que tombavam sobre toda uma assistência extraordinariamente tranquila. Eu olhava à minha volta, aterrada, à espera de ver os pecadores, acusados a eito, cairem fulminados por aquelas palavras. Mas não acontecia nada. Uma ou outra pessoa mais idosa suspirava, outras abanavam a cabeça, algumas sorriam acenavam discretamente aos amigos.
Ficavávamos só eu e o meu espanto e a minha grande tristeza e o meu pavor daquele deus tenebroso que eu não conseguia amar mesmo que quisesse.
Mas disso não podia falar com ninguém. Nem com o anjo da guarda, a quem pedia numa lengalenga que aprendíamos de cor, que viesse em minha companhia e guardasse minha alma de noite e de dia.
O anjo da guarda era mágico. Tinha asas, como as fadas. Era lindo. Parecia mesmo uma menina mas era rapaz. Era só nosso. Cada um tinha o seu, e nenhum anjo confundia a sua criança com outra criança qualquer. Além disso nunca nos abandonava, mesmo que fossemos horríveis e cometessemos pecados muito maus, como cuspir a comida que não nos agradava, deitar a lingua de fora a pessoas de quem não gostávamos, e dizer pequenas mentiras.
O anjo-da-guarda era tudo o que precisávamos para nos defender da vastidão do além e das suas ameças que incluíam deus e o diabo e as almas do outro mundo.

quinta-feira, novembro 11, 2010

Nhungwes e memórias de um professor de matemática

Cá fora chovia a potes e o vento virava as árvores de pernas para o ar. Lá dentro, ao fim de uns minutos, sentia-se o poderoso bafo equatorial. Voltámos todos a Tete, Lisboa, encontro de 2010. Erámos uns 180, numa grande sala alcatifada, espalhados por mesas, com dísticos ao peito como congressitas. Havia um homem orquestra que produzia música de baile de garagem, ao sabor dos 60s, com eventuais marchinhas e tudo. Um bufê esplêndido. E nós.
Olhávamos para o peito uns dos outros e soletrávamos os nomes. Conheço-te, não te conheci, lembras-te de mim?
De mim, tirando o grupo pequeno dos antigos alunos do 5º ano do colégio liceu de Tete, ninguém se lembrava. Eu vivi apenas três anos na cidade do Zambeze. Mas do pai toda a gente se lembrava. Desconhecidos e desconhecidas falaram-me dele com lágrimas na voz.
Depois a Cilinha contou-me que uma vez numa aula de matemática adormeceu:
- E ele não deixou que ninguém me acordasse. Se ela está a dormir é porque precisa de descansar, disse ele! Imagina. Acordei, o teu pai na secretária a corrigir testes. Já dormiste tudo? Então agora vai, ainda apanhas um bom bocado de intervalo.
O Jorge e eu trocámos um olhar estarrecido. Nós não conhecíamos essa versão do professor Gonzaga. Ela continuou com a história do ratinho da Índia:
- Eu trazia-o no bolso da bata e pu-lo sobre a secretária. Toda a gente a olhar para trás. O teu pai avançou na minha direcção, parou, olhou para o rato, pegou nele e disse: fica comigo até ao fim da aula. Nao quero ninguém a olhar para trás. E levou-o para cima da secretária dele, e o rato ficou a correr de um lado para o outro até o sino tocar, enquanto a aula prosseguia com toda a gente virada para a frente.

Eu não estava naquela aula. Deve ter sido no 4º ano, quando ainda estava no Colégio Barroso, LM, interna. A Cilinha tinha os olhos húmidos: «marcou-me tanto aquele senhor», suspirou. De repente, via-a tal e qual como era naqueles tempos. O mesmo olhar sério e intenso, a mesma quase timidez de quem pede desculpa ao mundo por andar por aqui. Vivia numa espécie de floresta equatorial, no Bairro do Fomento. Uma instalaçaão provisória, que as mãos amorosas e os dedos verdes das mulheres transformaram num jardim edénico, surreal, onde as plantas cresciam loucamente e as pessoas morriam de calor. As casas tinham começado por ser contentores serrados ao meio. Cheias de ares condicionados e ventoinhas. E de plantas e flores e árvores e pássaros e cães e papagaios e macacos. A construção civil não dava vazão ao crescimento avassalador da cidade, que a partir dos anos 60 explodiu de vida. O transitório tornou-se de algum modo perene. A imaginação e o amor fizeram o milagre.
Diante de mim, a Cilinha tem 14 anos. O coração não envelhece. O corpo, o rosto, é que se desfocam como as imagens que caçamos com muita pressa porque estamos emocionados.

segunda-feira, novembro 08, 2010

Palácio Pidwell, 19 de Julho de 1976


A festa dos 5 anos do André, no palácio Pidwell, Sines. Marta, t-shirt encarnada e chapéu junto do Al Berto, a seguir o João do Ó. Ao fundo, o Pedro. O André, boné de pala e pistola de plástico. Eu,  junto da menina de blusa amarela.
                                                                                                                                                                
O Al Berto ajudou-me. Sobretudo psicologicamente:
 - Não sei fazer como os outros pais e as outras mães fazem, nem tenho dinheiro para isso. Pirâmides de marisco, bolos em forma de campo de futebol, um ror de comida... numa festa para um miúdo que acabou de fazer cinco anos.
Ele riu-se.
- Claro que não! Sabes o que os miúdos gostam mesmo? O que nós gostávamos na idade deles. Um lanche, como as nossas mães faziam. Sumos, pãezinhos de leite com fiambre e queijo, um belo bolo de aniversário com um buraco no meio, cobertura de chocolate e velas.
Hesitei, apesar de tudo extremamente aliviada:
- Eu sei. Mas as festas dos miúdos, aqui... parecem banquetes de casamento!
- Porque são também para os amigos dos pais e para as famílias. Mas nós só precisamos de fazer um lanche para os putos. Até porque os únicos adultos presente somos nós.
O João do Ó interrompeu-nos:
- Podes passar na praça e comprar quatro gambinhas, uma para mim, outra para o Al Berto, outra para ti e outra para o Pedro. Assim sempre podes dizer que também havia marisco.
Deitei-lhe a língua de fora.
No imenso casarão, arranjámos primorosamente o corredor que desembocava nas duas entradas, a principal e a de serviço. Ali pusemos a mesa do lanche, com o menu de acordo com as nossas memórias de festas de aniversário. O Pedro trouxe um braçado de flores, e um belíssimo triciclo para o André e a festa foi um êxito. As várias crianças que apareceram, divirtiram-se loucamente a correr de um lado para o outro.
A luz do dia quentíssimo entrava a jorros inundando o corredor do palácio Pidwell, naquele dia de 19 de Julho de 1976.
Nesse tempo, vivíamos ali.

domingo, novembro 07, 2010

O Professor de matemática

Eu não conhecia aquele professor enquanto tal. Apanhei-o apenas no 5ª ano do liceu, no colégio liceu de Tete. E como morria de vergonha só com a ideia de que ele me pudesse chamar ao quadro e eu fazer má figura, resolvi aplicar-me nas duas disciplinas que mais detestava. Matemática e Fisíco-química. Fui ter com ele pedi-lhe para me dar explicações. Ele recusou-me como aluna particular. Por uma questão de ética, explicou:
- Se tiveres boas notas, toda a gente vai dizer que te passei, previamente, os testes. Fazemos o seguinte. Empresto-te as minha sebentas, e estudas por elas.
- Então os seus outros alunos e alunas a quem dá explicações? Não podem dizer o mesmo?
- Não - respondeu ele, secamente. - É totalmente diferente.
Tive vontade de chorar. Aquela rejeição doía duplamente. Afinal, aquele professor era, também, meu pai.
Em todo o caso, e para não perder tudo, agarrei nas suas sebentas, e atirei-me a elas. Na escaldante cidadezinha dos trópicos, os meus pais estavam a protagonizar uma, na época, muito inédita separação litigiosa de pessoas e bens. Por nada e por tudo. Não queriam continuar juntos. Mas para a miúda de 14 anos que eu era, o peso dos muitos olhos e muitos ouvidos que seguiam a novela chegava a ser esmagador. Ser boa aluna naquelas disciplinas, era uma forma de me tornar invisível e não dar azo a mexericos adicional. Por acaso, o meu irmão não pensava nada da mesma maneira, e arranjou uma forma confortável de passar á tangente, cabulando com todo o desplante. A Mimi, que recorda o professor de matemática num texto que me comoveu, fazia-lhe companhia. A dupla safou-se bem e com resultados razoáveis até nos exames finais.
Eu, porém, jogava pelo seguro.
Muitas vezes, ao fim da tarde, o João Nasi aparecia lá em casa e estudávamos juntos. Evidentemente, falávamos muito mais da nossa vidinha adolescente, do que de equações ou triangulos equiláteros.  Ele estava apaixonado de caixão à cova por uma colega nossa, uma menina alta, séria, de rosto de porcelana, olhos azuis e cabelos negros. A sua primeira namorada, acho. Nas minhas memórias dessas tardes, ela é omnipresente num interminável e eu disse e ela disse e eu disse e ela disse, ou, o que achas que eu devo dizer, o que é que ela quer dizer com o que ela disse?, e coisas mais ou menos assim.
Delicioso.
Mas o resultado final, foi explêndico. O meu irmão até se lembra dos parabéns que o pai recebeu pela aluna que eu fui, no exame oral das suas disciplinas. Uma fascinante prova sobre Geometria no Espaço. Nessa altura, se não fosse tão nítida a minha vocação para outros rumos, a matemática teria sido um apelo poderoso.
discursando na cerimónia de abertura ano lectivo 1969/70
 

quinta-feira, novembro 04, 2010

Facebook | Once Upon Tete o reencontro

Um encontro de gentes de Tete. Dos Nhungwes. Os que nasceram ali, ou que, por ali terem passado uma parte importante das suas vidas, criaram o elo inesquecível às terras do Zambeze. Nas palavras exactas do meu irmão Jorge, colocadas no mural de um dos organizadores, «reencontrar a maior parte daqueles que fazem parte do meu património emocional e memória histórica» transformou aquela tarde num marco para todos nós. A minha adolescência tem o cheiro daquela terra. E o calor inconcebível de uma estação quente que durava quase o ano inteiro. África, Terra Mãe, inoculou-me ali. Para sempre.
No Café Zambeze, um espaço virtual com visitantes do mundo inteiro, a festa passou em directo. Uma equipa filmou todo o encontro a que a diáspora portuguesa esteve atenta. A parte dos Nhungwes, claro. Ou dos Tetenses.

Nota: para ver as fotografias carregue-se no título da mensagem